sábado, 16 de abril de 2011

As diretrizes de Dalville a Lei de Sofia.o significado da comtemporização.



— Pelos céus, senhor, exclamei lançando-me aos pés de Dalville, lembrai que
vos salvei a vida, que por instantes, comovido pelo reconhecimento, parecieis
oferecer-me a felicidade e era isto o que esperava.
— Que entendes, diga-me, pelo sentimento de gratidão com que imaginas terme conquistado. Pensa melhor, criatura vil, que fazias tu quando me socorreste?
Entre a possibilidade de seguires teu caminho e a de vires comigo, escolheste a
última, como teu coração te inspirou. Pensavas então em alegrias? Por que diabos
pensas que sou obrigado a te recompensar pelos prazeres que me deste e como te
pode chegar à cabeça que um homem como eu, que nada no ouro e na opulência,
um homem com mais de um milhão de renda, e pronto para ir a Veneza para
desfrutar destas rendas à vontade, se digna aviltar-se e dever alguma coisa a uma
miserável como tu?
"Tivesses dado-me a vida, não te deveria nada, pois trabalhaste apenas para
ti. Ao trabalho, escrava, ao trabalho. Aprende que a civilização, ao derrubar as
instituições da natureza, não lhe roubou nenhum dos seus direitos. Ela criou seres
fortes e seres fracos, sua intenção sempre foi a de que estes fossem subordinados
àqueles, como o cordeiro sempre é subordinado ao leão, como o inseto ao
elefante. A sagacidade e a inteligência do homem variam a posição do indivíduo;
não é a força física que determina a posição, é a que ele adquire com suas
riquezas. O homem mais rico torna-se o homem mais forte, o mais pobre passa a
ser o mais fraco, mas isto, junto com os motivos que sustêm seu poder, a
prioridade do forte sobre o fraco sempre esteve nas leis da natureza, que são
iguais aos grilhões que prendem o fraco e que estão nas mãos do mais rico ou do
mais forte, e pelas quais ela esmaga o mais fraco ou então o mais pobre."Mas estes sentimentos de gratidão que reclamas, Sofia, ela os ignora. Jamais
esteve entre suas leis que o prazer a que um se entrega seja motivo para que
aquele que o recebe relaxe seus direitos sobre o outro. Vês nos animais que nos
servem exemplo desses sentimentos de que te gabas? Quando te domino pela
minha riqueza ou pela minha força, será natural que eu te entregue meus direitos,
ou por que tu mesma me serviste ou por que tua política mandou-te
recompensares a ti mesma servindo-me?
"Mas mesmo que o serviço fosse prestado de igual a igual, jamais o orgulho de
uma alma elevada se deixará aviltar pela gratidão. Não é sempre o humilhado o
que recebe do outro, e esta humilhação que ele sente não paga suficientemente
ao outro o serviço que ele prestou — é um prazer para o orgulho elevar-se acima
do seu semelhante, e se a obrigação, ao humilhar o orgulho daquele que a recebe,
torna-se um fardo para ele, que direito se tem de obrigá-lo a suportá-lo? Por que
devo consentir em deixar-me humilhar toda vez que olho para aquele a quem devo
obrigações?
"A ingratidão, em lugar de ser um vício, é, portanto, uma virtude das almas
fortes, assim como a beneficência é a virtude das almas fracas. O escravo a prega
ao seu senhor porque tem necessidade dela, também o boi ou o asno a
preconizariam se soubessem falar. Porém o mais forte, mais bem guiado pelas
suas paixões e pela natureza, não se deve entregar a quem o serve ou a quem o
adula. Que eles sirvam tanto quanto queiras, se isto lhes dá prazer, mas que
jamais exijam nada em troca.
Com estas palavras, às quais Dalville não me deu tempo de responder, dois
criados me agarraram por ordem sua, despiram-me e agrilhoaram-me com minhas
duas companhias, a quem fui obrigada a ajudar desde aquela mesma tarde, sem
que me permitissem sequer descansar da viagem fatigante que fizera. Não havia
um quarto de hora que estava presa àquela roda fatal quando o bando de
moedeiros falsos, terminando sua jornada de trabalho, cercou-me para me
examinar, com seu chefe à frente. Todos eles me acabrunharam de tantos
sarcasmos e impertinências sobre a marca desonrosa que trazia inocentemente no
meu corpo desgraçado. Aproximaram-se de mim, tocaram-me em todo o corpo,
fazendo gracejos cruéis e criticando tudo o que lhes oferecia a contragosto.''

 Justine - Marques De Sade

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